Sócia do escritório Grinberg Cordovil Advogados, Professora Doutora de Direito Econômico e Concorrencial da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), fundadora do Women in Antitrust (WIA), Leonor Cordovil foi nomeada na shortlist de melhor advogada antitruste do mundo pela Global Competition Review, em 2019, e ranqueada em 1º lugar como advogada mais admirada do Brasil, na especialidade Concorrencial, pela Análise Editorial, em 2020. Confira a entrevista de Leonor sobre a mulher na advocacia.
Agência Javali – Como sócia do Grinberg Cordovil Advogados (GCA), boutique altamente especializada, o que é ser mulher na advocacia e liderar uma banca em um mercado predominantemente masculino e conservador?
Leonor Cordovil: Um desafio quase invisível a ser encarado todos os dias! Depois que eu comecei a participar das discussões de gênero, eu comecei a perceber o quanto as mulheres sofrem veladamente. Nós não percebemos facilmente que, se fossemos homens, muitas de nós teriam chegado ao mesmo lugar, mas com a metade do esforço. Isso não é nítido, tem que participar dos debates para entender. Muitos ainda acham que a pauta de gênero é desnecessária, que as mulheres já alcançaram a liderança.
O mercado jurídico é altamente conservador. Se a mulher perde a paciência em uma reunião, é porque ela não está preparada, não aguenta o tranco. Se o homem perde a paciência, é porque os outros na reunião não colaboraram. Se a mulher faz uma sustentação e tem a voz fina, ela não passa confiança, se o homem erra na entonação, deve estar gripado.
Eu trabalho em uma área em que se viaja muito, tanto no Brasil quanto para o exterior. Já me vi em reuniões fora do país em que havia 10 homens na sala e eu, tendo que me virar no idioma, explicar nossas jabuticabas e ainda ganhar a confiança. Duvido que já não tenha entrado na sala com cinco pontos a menos, por ser mulher, precisando trabalhar o dobro para chegar ao zero e daí ficar positivo. Durante anos eu nem reparava, só nadava contra a corrente, hoje eu reparo. Já vi clientes preferirem um advogado homem porque ele transmitia a sensação de ‘vai cuidar melhor do caso’. Para alguns é quase instintivo, sobretudo quando o cliente é homem. Antes eu achava que não tinha me saído bem na reunião de apresentação, hoje vejo que era preconceito puro. Que pena, algumas mulheres são muito mais detalhistas e atentas e isso faz muita diferença na entrega de trabalhos jurídicos.
A minha sorte é que eu tenho dois sócios que não reproduzem qualquer tipo de comportamento machista. Já tivemos várias colegas que vieram trabalhar conosco dizendo que o escritório valoriza as mulheres. Valorizamos todo mundo, mas a pauta feminina é bem natural e lembrada por aqui.
Agência Javali – Apesar do crescimento no número de mulheres na advocacia, elas ainda são minoria em cargos de liderança. Quais são os principais desafios que as mulheres encontram para que possam ocupar posições mais altas dentro dos escritórios?
Leonor Cordovil: Estou lendo um livro interessante sobre história da família Pascolato, em que o sucesso dependeu das mulheres (O Fio da Trama). De 1930 até os dias de hoje é a mesma história, com alguns avanços, mas a mesma história. A mulher tem que se impor, fingir que os filhos não vão atrás dela quando ela está em home office, fingir que é fácil voltar de licença maternidade, fingimos tudo. Desde 1930 até 2021. Imagina se eu me dou ao luxo de deixar minhas filhas (gêmeas de 4 anos) aparecerem nas videoconferências? Alguns vão achar legal, parte da luta, vão aplaudir, mas ainda temos aqueles que vão achar que ‘isso só acontece com as mulheres’. Se eu perder o processo, é provável que ainda achem que foram os filhos. Ainda existe isso, é muito triste.
As mulheres enfrentam muitos desafios dentro de casa, infelizmente, principalmente as que já têm filhos. Conciliar essa desigualdade interna com a luta externa ainda é o maior deles. Em geral, as mulheres que se destacam têm em casa alguém mais parceiro, ou moram sozinhas! Isso é nítido nos casos que acompanho.
Acho que em alguns grandes escritórios, há ainda muito preconceito mesmo. Aquela ideia de que a mulher não vira a noite, não debita muitas horas, não consegue dar conta. Por isso, tenho a impressão de que algumas mulheres preferem abrir os seus escritórios ou migrar para os pequenos, escuto muito isso. Os menores dão oportunidades sem que você tenha que ficar brigando com a ignorância que reina em alguns. Debitar muitas horas só para elevar a fatura do cliente deveria ser proibido por lei, é amoral, mas infelizmente ainda existe. Muitas mulheres são muito eficientes, não precisam ficar debitando horas para entregar um bom trabalho, é lógico que elas preferem ir para casa, nem que seja para se divertir. Acho que os homens são mais permeáveis a essa ideia, ou mais capturados pela obrigação de ficar no trabalho por horas. Talvez o home office mude essa perspectiva.
Outro dia ouvi em uma mesa de jantar, de um amigo próximo (ou ex-amigo?) que as mulheres não davam conta mesmo. Ele me disse que a empresa estava incentivando sócias, mas que elas não davam conta, no final acabavam desistindo mesmo. Por curiosidade, resolvi dar corda ao papo e não gostei do resultado. Fiquei assustada.
Resumindo, os desafios estão em casa e no trabalho. No trabalho, elas precisam fingir muito bem (que não têm problemas que os homens facilmente declaram) e precisam sempre acertar. Pegando carona no racismo estrutural, existe o machismo estrutural. Outro dia vi, no nosso grupo WIA, uma discussão legal sobre licença paternidade. Deveria ser obrigatória. Assim, não haveria constrangimentos. Os escritórios devem sim adotar medidas afirmativas. É importante. Para além disso, o resto as próprias mulheres fazem, que é demonstrar uma competência absurda.
Agência Javali – Além de contribuir para o fomento da diversidade e inclusão, o que um escritório ganha ao investir na liderança feminina?
Leonor Cordovil: Talentos. Quando aposta na pauta da diversidade (não só de gênero, mas todas), o escritório ganha talentos. As gerações mais novas estão atentas a isso, aprenderam nos colégios, nas rodas de amigos, não vão tolerar muita coisa como as gerações mais antigas. Ao investir em isonomia, o escritório fideliza seus talentos, mostra que é um lugar preocupado. Já passou da época em que virar a noite era lindo. Então também já passou da época em que ter 40 sócios homens era legal. Só os dinossauros do direito não percebem isso. Qualquer talento à procura de um escritório checa a lista de advogados no site, vê nomes, busca informações.
Agência Javali – Qual o papel da mulher na transformação do mercado jurídico e como os pares podem contribuir para essa mudança?
Leonor Cordovil: A minha turma de faculdade foi a primeira, em 100 anos de UFMG, que teve mais mulheres do que homens. Isso hoje, graças a Deus, é normal. As mulheres quebraram muitos paradigmas no mundo jurídico. Além de serem mais sensíveis a vários direitos, são mais cautelosas. Veja o número de juízas e de promotoras. Dependendo da matéria que se discute, você fica torcendo para ter um sexo ou outro no julgamento. Isso traz pluralidade, diversidade. Ninguém quer favoritismo, o que se discute é que a diversidade de pensamentos é positiva para todo mundo.
Como os pares podem contribuir? Parando de criar obstáculos e quebrando ideias de machismo estrutural. Se ainda há homens, em 2021, que pensam que a mulher não dá conta, meu Deus, ainda há muito a ser feito. Deve ser medo, só pode ser.
Agência Javali – O Grinberg Cordovil Advogados possui 75% de mulheres como advogadas e estagiárias no quadro de profissionais. Como esse processo se deu e qual a importância você atribui a esse cenário?
Leonor Cordovil: Quer mesmo saber a verdade? As mulheres têm se dado muito melhor nas entrevistas. Além de ser um número maior (pelo menos as que se candidatam em nossos processos), elas demonstram vontade, esperteza, conhecimento que às vezes falta nos homens. Quando eu pergunto a um colega que fez a entrevista ‘por que você acha que ela é melhor do que ele’, sempre escuto ‘ah, ela parece ter mais força de vontade, mais disposição, ele não demonstrou tanta garra’.
As mulheres têm saído da faculdade extremamente capacitadas, talvez seja esse o resultado de tanto preconceito (elas precisam se qualificar) dos pais, que ainda são da minha geração (acima dos 40). Aos 29 anos, eu já tinha defendido meus dois mestrados e meu doutorado. Isso certamente aconteceu, além de outras razões, porque escutei da minha mãe que eu precisava estudar muito porque, quando eu engravidasse, meu chefe poderia me demitir. Quando eu engravidei, não tinha chefe, só sócios, não fui demitida e fiquei muito mais produtiva, na gravidez e depois. Graças a Deus as coisas mudaram, mas ainda temos estrada pela frente. Ou seja, as mulheres já entenderam que precisam vencer, muitas ainda por peso do que ouviram lá atrás, mas a nova geração já vai vir boa por inércia.
Não é melhor ou pior, mas posso garantir que ter tantas mulheres no time o faz bastante comprometido e atento aos detalhes. Algumas características femininas afloram aqui, e acho que o resultado é bastante positivo.
Agência Javali – Sua atuação nas áreas do Direito Concorrencial, Comércio Internacional e Direito Anticorrupção é reconhecida no cenário nacional e internacional. Ano após ano, você figura no topo do ranking Análise Advocacia e de outros rankings. Como você avalia esses prêmios e o que significa ser uma das mulheres advogadas mais admiradas do Brasil?
Leonor Cordovil: Essa é a pergunta mais difícil de responder, porque nós, mulheres, temos este defeito de fábrica. Uma das coisas que a gente aprende em treinamentos de empoderamento é exatamente dizer ‘nossa, legal, eu ganhei esse prêmio mesmo’. Precisamos de muitas aulas para conseguir dizer isso. Acho que os homens fazem isso muito melhor do que a gente!
Eu digo aos meus alunos que me considero muito feliz, porque trabalho e dou aulas em áreas de que eu gosto muito. Sei que não é todo mundo que tem essa sorte ou essa oportunidade. Óbvio que foram muitos tombos, embora só apareçam as pingas. Uma vez encontrei um tio na rodoviária de Belo Horizonte, quando eu vinha fazer entrevistas em São Paulo (dormia dois dias no ônibus, um na ida e outro na volta!). Ele me perguntou o que eu tinha na bolsa (só tinha a bolsa), e eu mostrei um terninho todo dobradinho. Ele riu e disse ‘você vai conseguir’. Tem que correr atrás do que gosta e quer, não tem outra receita.
Os rankings só confirmam o quanto você gosta de trabalhar com alguma coisa. Se você gosta, você trabalha feliz, acha desafiador, e fica muito satisfeita quando consegue um bom resultado. Quando um cliente nosso tem uma acusação arquivada, ou um pedido aceito pelo Governo, eu me vejo comemorando muito, sozinha ou com a equipe. É nessas horas que a gente tem certeza de que adora o que faz, e que fez com tanto carinho que o resultado foi bom.
Agência Javali – Além de atuar como sócia do GCA, você é uma das fundadoras do Women in Antitrust (WIA), rede de mulheres que atua com o Direito Concorrencial. Como o WIA funciona e qual o propósito do instituto?
Leonor Cordovil: O WIA nasceu em 2017 e é uma alegria enorme ver que deu tão certo. Ouvimos vários ‘não precisa, o antitruste é feminino’, mas, apesar dos comentários, deu certo. Somos mais de 300 mulheres, temos nossas redes sociais (Instagram, linkedin e Facebook), além de um grupo de Whatsapp e muitas iniciativas. Veja nosso site.
Somos um grupo de fundadoras, diretoras e gerentes que se alternam para dar suporte a todas as atividades. Contamos com advogadas, acadêmicas, economistas, servidoras públicas, unidas para divulgar o antitruste e nos aperfeiçoar. Nós queremos que cada uma das participantes se sinta dona, sinta-se parte da iniciativa, possa contribuir. Se não quiser atuar diretamente, pelo menos que o WIA possa lhe trazer conteúdo interessante, ajudar na sua formação e informação. Com isso, podemos ajudar e sermos ajudadas.
Difícil relatar tudo o que fazemos, mas publicamos livros de artigos sensacionais, temos podcast, talks, mentoria, eventos, divulgação, um monte de coisas. Todos os dias eu me surpreendo com a capacidade e fôlego das nossas gerentes e diretoras. Debatemos com os escritórios, consultorias e com o Cade, recebemos bastante apoio e todos têm sido bastante abertos às nossas discussões.
Agência Javali – Nesse mês de março, em função do Dia Internacional da Mulher, vemos muitos escritórios produzindo conteúdos sobre a importância da data. No entanto, a ação nem sempre condiz com a prática da banca. Como você avalia esse posicionamento? Ele tende a ser prejudicial à imagem dos escritórios?
Leonor Cordovil: Sem dúvida. E todo mundo sabe quem são os escritórios que falam, mas não fazem, a informação circula. Alguns pequenos dizem que são muito pequenos para fazer alguma coisa. Alguns grandes dizem que tentam, mas alguns não tentam. Outros conseguem, e todo mundo reconhece. Não adianta mandar flores, presentes, dizer que valoriza as suas mulheres, se elas jogam tudo no lixo e contam para as outras. Tem que abraçar de verdade a pauta.
Agência Javali – Qual a mensagem você pode deixar para os escritórios que desejam aumentar o protagonismo feminino dentro da banca?
Leonor Cordovil: Entendam as diferenças e façam ações afirmativas. Trabalhem essas diferenças. Inovem. Promovam as mulheres, mas também levem a pauta aos homens. Promovam discussões, circulem questionários, melhorem seus canais de denúncia. Estejam atentos para abusos, punam-nos severamente e exemplarmente. Sejam um ambiente em que as discussões de gênero (e todas de diversidade) sejam bem-vindas. Tenham grupos e comissões, mas elas precisam de espaço e força. E não, nunca, jamais digam que as mulheres não podem.