A batalha das mulheres pelo direito de compor o universo jurídico é centenária e tem início com a história de Myrthes Gomes de Campos, considerada a primeira advogada do Brasil, em 1906. Foi a partir de seu ingresso no Direito que outras mulheres puderam trilhar o mesmo caminho rumo à liderança feminina na advocacia.
Esperança Garcia, mulher negra e escrava, recebeu o título de primeira advogada do Piauí, após escrever uma carta ao governo do Estado denunciando a situação de maus-tratos que vivenciava. A descoberta da carta, em 1979, culminou no título simbólico concedido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a partir do entendimento de que o ato de Garcia não era diferente da atuação de uma advogada.
O avanço da mulher no Direito também pode ser observado na luta de Thereza Grisólia Tang para se tornar a primeira mulher magistrada no Brasil – 50 anos depois da primeira mulher advogada. Mais 46 anos e Ellen Gracie foi a primeira mulher a ocupar o cargo de ministra do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao longo dos anos, a coragem para enfrentar os desafios impostos resultou em um ambiente um pouco mais igualitário. De acordo com um levantamento realizado pelo JOTA, em 2020, as mulheres são maioria entre advogados até 40 anos e representam 56% dos inscritos na OAB nessa faixa etária. Ao considerar os profissionais com até 25 anos, a presença feminina é quase o dobro em relação à proporção masculina, com 64%.
Esse quadro, no entanto, se inverte ao considerar profissionais entre 41 e 60 anos: 54% são homens. Acima dessa faixa etária, prevalece a presença masculina com 68%. Com isso, ao considerar os números totais, os homens ainda representam maioria – ainda que com sutil diferença: 581.772 advogadas e 592.462 advogados – entre todos os inscritos na OAB.
A liderança feminina na advocacia: uma outra realidade
O progresso obtido pelas mulheres é inegável. Há, contudo, um longo caminho a ser percorrido quando se trata do papel da mulher na advocacia, especialmente porque, embora exista maior equilíbrio atualmente, esse cenário não se aplica aos cargos de liderança.
Segundo a pesquisa “Como está a diversidade de gênero nos escritórios de advocacia no Brasil”, realizada pela Women in Law Mentoring Brazil, quando uma mulher ingressa em uma banca, as chances de se tornar sócia são menores em relação às oportunidades oferecidas a um homem. Apesar de responderem por 57% dos profissionais na composição geral dos escritórios, somente 34,9% das mulheres são contempladas no quadro de sócios de capital. O estudo contou com a participação de 55 sociedades, totalizando 3.715 profissionais.
A disparidade entre os gêneros, em relação à posição de liderança, também recai sobre a remuneração. Ao considerar o percentual de 10% do número total de advogados dos escritórios, incluindo os sócios, que receberam maior remuneração em 2017, apenas 36% eram mulheres. Somente em 16% havia predominância feminina entre os 10% melhor remunerados.
Nesse sentido, fica cada vez mais evidente que a ascensão das mulheres na advocacia é uma questão que necessita, ainda, de muita atenção para que o mercado como um todo possa contribuir para a construção de modelos de trabalho com maior equidade.
Vale ressaltar, também, que além de fomentar a responsabilidade social dos escritórios e colaborar com o avanço da sociedade, de maneira geral, a implementação de programas de diversidade e inclusão também são responsáveis por atrair mais talentos às bancas, além, é claro, de gerar mais ganhos financeiros.
A pesquisa de 2018 intitulada “A diversidade como alavanca de performance”, da consultoria empresarial McKinsey, revela que, ao redor do mundo, empresas que investem em diversidade de gênero contam com uma probabilidade de 21% a mais na obtenção de lucro, assim como 27% têm maiores chances de criar valor para a companhia no longo prazo.
Os números também são expressivos ao considerar diversidades étnica e cultural. Ao avaliar seis países com diversidade étnica consistente, a pesquisa apontou que equipes com maior diversidade étnica não só ganham com o fortalecimento da reputação como também aumentam em 33% as margens de lucro frente a companhias que não desenvolvem ações voltadas para pessoas diversas.
Esse cenário reforça a ideia de que, cada vez mais, o mundo tem se voltado para questões relativas à diversidade, ressaltando a sua importância para as empresas. Contudo, é fundamental que os escritórios tenham em mente que a estruturação de políticas para diversidade deve ser levada a sério e dialogar com o posicionamento da banca; medidas tomadas pelas sociedades que visam, exclusivamente, a geração de lucros ou a transmissão para o mercado de uma imagem que não condiz com a prática diária não se sustentam no longo prazo.
As sociedades de advogadas
Os dados alarmantes em relação à violência de gênero e às demais minorias, levaram as advogadas Ana Paula Braga e Marina Ruzzi a fazerem história. Com o objetivo de atuar sobre essas causas, as profissionais fundaram, em 2016, a banca Braga e Ruzzi Sociedade de Advogadas – formado por mulheres para a defesa apenas de pautas femininas.
Considerado pioneiro na advocacia para mulheres, o Braga e Ruzzi Sociedade de Advogadas atua na defesa de direitos de populações vulneráveis e oferece “assistência jurídica, consultiva e contenciosa, voltada para a efetivação dos direitos das mulheres e da população LGBT+, visando a erradicação das desigualdades e opressões envolvendo gênero e sexualidade”.
Outras bancas, como é o caso do escritório Abud Marques Sociedade de Advogadas, também evidenciam a importância do empoderamento feminino e da união de advogadas para criar espaços de destaque e liderança para mulheres que atuam para transformar o mercado jurídico, levando a equidade de gênero para os centros de discussões.
Para essas bancas, assim como tantas outras, a nomenclatura faz parte do processo de luta. No Paraná, por exemplo, existem 1.841 escritórios formados exclusivamente por mulheres e a OAB do Estado foi a primeira a admitir, em 1994, que as bancas “femininas” utilizassem o termo “Sociedade de Advogadas”. Na Bahia, Rio de Janeiro e Ceará, os números também são relevantes, com 712, 609 e 353 sociedades, respectivamente. E apesar de possível, ter o nome “advogada” não foi um processo simples. Muitas seccionais ofereceram resistência à nomenclatura e foi apenas em 2018 que o Conselho Federal da OAB autorizou a inscrição das bancas como Sociedade de Advogados, Advogadas ou Advocacia.
Liderança feminina na advocacia e os programas de igualdade de gênero
Com a demanda crescente da sociedade pela implementação de políticas de diversidade em todo o mercado e diante da falta de protagonismo feminino nos cargos de liderança dos escritórios, algumas bancas têm se inteirado sobre o tema e lançado programas para mudar esse cenário.
Confira abaixo quatro programas de destaque de relevantes escritórios brasileiros:
D Mulheres – Demarest Advogados
Lançado em agosto de 2017, o D Mulheres aderiu ao Programa Empresa Cidadã, do Governo Federal, em 2018, que ampliou a licença maternidade de 120 para 180 dias (6 meses) e a licença paternidade de 5 para 20 dias por entender que a expansão do período para os homens traz mais segurança às mães em um momento crucial para o desenvolvimento do bebê, além de estimular a paternidade ativa.
Em 2018, o escritório também se comprometeu com os Princípios do Empoderamento Feminino da ONU Mulheres, o que possibilitou mapear a efetividade das ações em prol da igualdade de gênero em seu quadro funcional.
A banca também investiu, por meio do D Mulheres, em uma pesquisa de diagnóstico de equidade de gênero, conduzida por consultoria externa, a fim de elencar as principais barreiras e desafios da carreira feminina dentro do escritório. A partir disso, foram desenvolvidos canais específicos para tratar as demandas das mulheres.
Além disso, o D Mulheres também contribuiu para o monitoramento do protagonismo feminino. Atualmente, o Demarest possui 38% de mulheres em cargos de liderança e tem como meta alcançar 50% até 2025.
Igualdade de Gênero – Trench Rossi Watanabe
Com o objetivo de fomentar a igualdade de gênero dentro do escritório, a banca investiu na criação de políticas e ações periódicas de conscientização sobre o tema. Entre as práticas, estão:
- Política de promoção da equidade de gênero;
- Treinamento e Estímulo à Liderança das Mulheres;
- Ações de equilíbrio entre trabalho e vida pessoal;
- Políticas de gestão da cadeia de valor e engajamento de stakeholders em prol da equidade de gênero;
- Consultoria jurídica para mulheres em empresas de clientes.
4Women – Mattos Filho
Batizado de 4Women, o programa é composto por um “grupo de afinidades” do escritório dedicado à Jornada de Desenvolvimento Profissional das Mulheres, com o objetivo de promover ambientes de trabalho mais igualitários, com oportunidades iguais para homens e mulheres – que representam 58% do quadro de profissionais da banca.
O grupo, que já conta com cinco anos de existência, busca estimular, ainda, a participação de pares, mobilizando profissionais do gênero masculino e tornando-os aliados nesse trabalho.
Diversidade e Inclusão – Daniel Advogados
A banca possui 48% do seu quadro de colaboradores composto por mulheres, das quais 49% estão entre os sócios e 45% ocupam cargos de liderança. O escritório adotou medidas para aumentar a licença maternidade e paternidade, implementou programas como auxílio creche para crianças de até seis anos, além de criar salas de amamentação dentro do escritório.
Além disso, a banca se destaca por ter sido pioneira a na equiparação de salários. Após um processo de análise de salário de todos os colaboradores, o escritório desenvolveu um plano para que homens e mulheres, que desempenham a mesma função, recebessem remunerações iguais.
Os escritórios citados também defendem outras pautas de diversidade, como LGBTQIA+, etnias, Pessoas com Deficiência (PCD) e tolerância religiosa. Vale ressaltar que as bancas foram contempladas, também, no Guia de Diversidade da Exame, na edição de 2020.
É importante destacar que embora à primeira vista desenvolver programas voltados à diversidade seja uma tarefa possível somente para escritórios de grande porte, toda e qualquer banca pode investir em políticas que visam o apoio a causas inerentes à evolução da sociedade. Os desafios são os mesmos para os diferentes tipos de escritórios, cada um com as suas especificidades, e o principal passo para concretizar a implementação de projetos de inclusão é o fomento à cultura de diversidade dentro da banca, de modo que as ações realizadas sejam reflexos do posicionamento da marca.
Para saber mais sobre a liderança feminina na advocacia, ouça o episódio do Juridcast, podcast da Agência Javali:
Liderança feminina nos escritórios de advocacia, com a participação de Luciana Tornovsky, Maria Helena Bragaglia e Marcia Cicarelli, sócias do Demarest Advogados
Você também pode acessar a entrevista exclusiva de Leonor Cordovil, sócia do Grinberg Cordovil Advogados, sobre liderança feminina na advocacia clicando aqui.