Márcia Rocha é empresária, representante da World Association for Sexual Health, uma das fundadoras da TransEmpregos e a primeira advogada a receber a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo (OAB-SP) com seu nome social.
Agência Javali – O Direito é, historicamente, uma área conservadora. Embora seja possível ver alguns avanços nos últimos anos, ainda há muitas barreiras para serem ultrapassadas. Nesse sentido, como é ser membro da comunidade LBGT+, especialmente como representante da “letra T”, nesse mercado?
Márcia Rocha: Eu já estava assumida para algumas pessoas mais próximas, mas me assumi publicamente, principalmente na advocacia, em um evento da OAB. Foi um choque, eu acho, para muita gente. Mas, a partir daquele momento, eu fui convidada para fazer parte da Comissão de Diversidade da OAB e, depois, passei a ser convidada para muitos eventos e palestras pelas OABs e subseções do Brasil inteiro e faculdades de Direito. E realmente foi algo muito novo uma advogada se assumir trans.
Em um desses eventos, uma menina veio com um computador e falou: “Dra. Márcia, não estou te achando nos quadros da OAB” e eu disse que ela não ia me achar mesmo porque o meu nome masculino estava registrado lá. E aí um colega, que estava na mesa, sugeriu que a gente desse entrada com o pedido para eu poder usar o nome social e, assim, eu fui a primeira trans a conseguir o uso do nome social na OAB, aprovado por unanimidade no Conselho em 2017. Peguei minha carteira profissional em 2018 e alguns meses depois o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu o direito às pessoas trans de fazer a alteração de nome e sexo no documento sem a necessidade de judicializar. Para fazer isso agora, basta ir ao cartório.
Então, só essa história já demonstra a evolução. No primeiro momento, em 2013, foi um susto imenso, uma coisa muito inusitada, até ser aprovado pelo Conselho Federal em 2017. Acho que o fato de que eu que participei de muitas palestras e muitos eventos foi ajudando a conscientização e outras pessoas, advogados e advogadas trans, também foram se assumindo, tendo mais visibilidade.
Agência Javali – Você se identifica como travesti e não como transexual. Por quê?
Márcia Rocha: Eu me identifico como travesti, primeiro porque, tecnicamente, essas questões são autodeterminadas. As pessoas transexuais, em geral, têm uma sensação interna de serem mulheres ou homens iguais a todos os outros. E nós, as travestis em geral, não temos essa sensação de ser biologicamente iguais ao gênero oposto. O que acontece é que há uma afirmação de gênero correspondente ao sexo oposto, mas com consciência plena e interna de ser algo no meio. Algo que está ali no meio do caminho. Em geral, travestis não querem fazer cirurgias. Não é regra, mas, de modo geral, transexuais têm esse desejo. Contudo, a questão não é física, de operar ou não operar, é uma questão interna da identificação enquanto ser uma mulher igual a todas as outras ou ter uma identificação com o feminino muito forte, mas com a consciência de que não está mais satisfeita com o próprio corpo. Uma rejeição, o que chamamos de disforia, com o próprio corpo.
Além disso, tem a questão política. Por ser uma pessoa que nasceu em uma classe social alta, com todos os privilégios, que teve todas as oportunidades, trazer para mim o termo travesti (que é muito estigmatizado), também é uma forma de romper com esse estigma, essa imagem de que a travesti é obrigatoriamente uma prostituta em uma situação de extrema vulnerabilidade. E hoje, depois de mim, muitas outras vieram. Temos diretora de multinacional que se assume travesti.
Agência Javali – Você acha que há diferença na forma como as pessoas te tratam hoje em relação ao tratamento recebido antes da transição?
Márcia Rocha: Quanto à forma do mundo me tratar é completamente diferente. Até quero escrever um livro só sobre a transição porque é algo muito significativo.
Enquanto antes eu tinha um olhar e um respeito das pessoas como um homem branco e cis, em que ninguém sabia que eu era trans, hétero e tal, as pessoas tinham respeito, uma consideração e até um olhar diferente. Conforme fui transicionando, isso foi mudando, mesmo que hoje eu seja uma pessoa conhecida, com uma postura, vamos dizer, de elite, com o modo de me vestir, me portar e de falar. Para ter ideia, no primeiro momento, quando olham, as pessoas me seguem em uma loja, por exemplo, para ver se eu não vou roubar nada. Às vezes me olham feio no restaurante que eu vou. Então mudou muito.
Agência Javali – Em algum momento a sua carreira foi prejudicada em função de sua identidade de gênero? Quais foram os principais desafios que você enfrentou?
Márcia Rocha: Eu não tive nenhum problema profissional por ser trans. O que há é o preconceito. A pessoa te julga antes de te ouvir ou de saber quem você é. Isso acontece constantemente, mas como eu sou empresária, além de advogada, eu não dependo dos outros profissionalmente. Então, isso me dá uma vantagem. Agora, nunca aconteceu de eu ter um problema sério profissionalmente por conta de preconceito ou por ser trans. Eu lido, sim, com o preconceito constantemente, mas não chegou a me causar um dano de algum tipo na carreira.
Agência Javali – Você foi a primeira travesti a conseguir o reconhecimento do nome social na OAB, uma vitória importantíssima. O que isso representa?
Márcia Rocha: Foi muito importante, fico muito honrada de ter conseguido isso.
Agência Javali – Para muitas pessoas que não possuem conhecimento, é muito comum achar que o nome social e o uso correto dos pronomes não é algo relevante. O que isso representa para uma pessoa trans?
Márcia Rocha: Olha, a questão de pronome, não é que a pessoa é ignorante ou mais instruída. É uma questão de respeito. A pessoa pode errar, até eu erro às vezes! A pessoa tem o direito de errar, usar o pronome errado. A questão é educar: “Olha, por favor, me chame assim”. E a pessoa daí passa a chamar.
O que existe, o que é violento, é quando a pessoa fala “não quero chamar, vou te chamar do que eu acho que tem que ser e acabou”. Isso é violência, é um ato para deslegitimar quem você diz que é. E isso é violento porque quem tem que dizer o que eu sou, sou eu, não é o outro. Então, a questão de artigo, pronome, isso é secundário, não é tão importante. O que importa é a intenção que está por trás, no momento que a pessoa está falando com você ao usar um pronome ou artigo errado.
Agência Javali – Pensando sobre a importância do tratamento e o combate ao preconceito, vemos muitos escritórios de advocacia darem início a processos de recrutamento de pessoas diversas. No entanto, sabemos que não basta contratar, é preciso incluir e cuidar desse colaborador no dia a dia. O que você acha que os escritórios devem fazer para que a diversidade e a inclusão sejam bem abordadas?
Márcia Rocha: Não adianta você contratar uma pessoa trans e a jogar aos leões. Tem que haver uma preparação, uma capacitação, para que haja respeito ao indivíduo como um ser humano, como todos os outros, sem diferenciação, sem discriminação. É isso o que precisa ser feito. Com relação à inclusão, em escritórios ou empresas, nós do TransEmpregos fazemos todo um trabalho de conscientização interna e capacitação de RH gratuitamente, mas também existem consultorias para ajudar empresas e escritórios a ver a situação em que estão e o que precisa ser feito.
Agência Javali – Quando falamos de contratação de pessoas LGBT+, sobretudo de transexuais, ainda existe muita discriminação. Como foi que surgiu o TransEmpregos e quais os resultados obtidos até agora?
Márcia Rocha: O TransEmpregos existe desde 2013, mas foi lançado, oficialmente, em 2014. No primeiro ano da iniciativa, uma pessoa já foi contratada. Em 2015, eu já fazia parte de um fórum LGBT+ de empresas e de direitos LGBT+. Nesse fórum de multinacionais, as empresas começaram a fazer parcerias conosco e, em 2015, foram algumas dezenas contratadas. Mas a gente não tinha o controle das pessoas. Em 2020, passamos a fazer a contagem de pessoas contratadas e a relação de empresas contratantes. O resultado foi a contratação de 707 pessoas trans. O número vem crescendo, apesar da pandemia e da crise. Agora, em junho, conseguimos mais de 950 empresas parceiras. Então está crescendo bastante, inclusive com vários escritórios de advocacia também.
Agência Javali – Na sua opinião, quais são as maiores dificuldades para que pessoas trans consigam uma colocação no mercado?
Márcia Rocha: A maior dificuldade para contratar uma pessoa trans é o preconceito. Foi o que eu falei, a pessoa olha e te julga antes de você abrir a boca. Ela bate o olho e junto com a sua imagem vem uma série de vieses inconscientes. Muitas vezes, o próprio responsável pela entrevista olha o seu currículo e acha maravilhoso, mas na hora que te chamam e olham para você, o cenário muda. E mesmo você sendo uma trans ou um trans muito convincente fisicamente, às vezes não tem o nome alterado ainda. Então são questões que levantam o viés inconsciente do julgamento. É o preconceito. Esse é o principal obstáculo, porque esse preconceito existe em toda a sociedade, está dentro das pessoas. Romper esse viés inconsciente é um processo lento, demorado, que estamos fazendo há alguns anos. Isso está mudando, mas ainda existe.
Agência Javali – De que forma os escritórios de advocacia, e o mercado jurídico como um todo, podem atuar para ser mais inclusivos? Qual mensagem você deixa para as bancas em relação à causa LGBT+?
Márcia Rocha: O judiciário como um todo e os escritórios precisam ter mais contato com as pessoas trans para que elas tenham a oportunidade de mostrar sua capacidade. É o que a gente vem aplicando em todas as empresas, de um modo geral. Existem pessoas trans muito competentes, com muita vontade de aprender, às vezes já qualificadas, por se assumirem mais tarde, como eu. E a gente quer mostrar isso, quer que as pessoas deem oportunidade e façam uma seleção sem preconceito. Fazendo isso, eles vão abrir oportunidades e a existência dessa pessoa na empresa, no escritório, no judiciário, circulando e fazendo boas petições, fazendo boas audiências, rompendo o preconceito de um modo geral é reconhecida. As pessoas que têm contato com LGBT+ vão percebendo que estavam erradas. Eu ouço muito isso: “você mudou a minha cabeça”. Mas não é que eu mudei, a cabeça que estava com uma ideia errada que não tinha base em fatos, eram achismos, eram ideias colocadas ali que não tinham sentido, que não tinham apoio na realidade. E mudar isso é mostrar na prática o engano.
Agência Javali – E às pessoas da comunidade LGBT+ que querem ingressar no Direito ou que já atuam na área?
Márcia Rocha: O número de pessoas trans ingressando na advocacia cresce cada vez mais. Eu dou aula em algumas faculdades, faço muitas palestras em cursos de Direito e vejo cada vez mais pessoas trans. Então, para elas, principalmente, mas também para toda a comunidade LGBT+, minha mensagem é que tenham paciência, que não façam ativismo dentro de empresas e escritórios, que não abaixem a cabeça, que mantenham suas cabeças erguidas, mas que não façam ativismo, porque se ela está ali para trabalhar, ela tem que mostrar que é competente. E que elas se esforcem. Infelizmente, elas têm que se esforçar mais do que os outros para mostrar sua competência e sua capacidade, porque isso reflete em toda a comunidade. Quando uma pessoa trans é bem-sucedida, ela reflete isso em toda a comunidade, que passa a entender que é possível uma pessoa trans ser alguém brilhante, inteligente e competente.