A língua é um organismo vivo e em constante evolução. Enquanto fenômeno comunicativo, a linguagem traz consigo a bagagem de um contexto histórico e a consolidação de um instrumento de transformação social e manifestação cultural. Nesse sentido, por ser mutável e adaptável às novas realidades, a linguagem reflete, portanto, quem somos enquanto sociedade e, por isso, abarca, também, os discursos e comportamentos preconceituosos que, consciente ou inconscientemente, reproduzimos.
É por essa razão, na tentativa de refrear esse movimento, que cada vez mais termos como linguagem inclusiva ganham força, justamente pelo fato de que mudar a forma como falamos e escrevemos pode mudar também o nosso entendimento e, consequentemente, a maneira como nos comunicamos para incluir todas as pessoas.
Isso porque a linguagem inclusiva – ou não sexista, como também é conhecida – busca promover uma comunicação que não exclua ou inviabilize determinado grupo, sem modificar o idioma, de modo a trazer representatividade em um aspecto mais amplo.
As barreiras do idioma
A falta de representatividade fica evidente nas marcações de gênero, que naturalizam o masculino como neutro – o chamado masculino genérico – e inviabilizam o feminino; dificuldade imposta pelo próprio idioma. O português, assim como outros idiomas provenientes do latim, tem marcadores de gênero bem definidos, com a existência de palavras femininas e masculinas. Contudo, para falar ou escrever, de modo genérico ou no plural, o gênero masculino é usado para representar o todo.
Pela norma, ao se dirigir a um grupo composto por pessoas do gênero feminino e masculino, o correto é usar “todos” ou “eles” para referenciar o coletivo – ainda que a maior parte do grupo seja composta pelo gênero feminino. A regra para o uso do masculino genérico foi criada na década de 1960 pelo linguista Joaquim Mattoso Câmara e vem sendo utilizada desde então.
Em outros países, como Turquia e Finlândia, a língua foi desenvolvida sem flexão de gênero. Já o inglês, embora não seja completamente neutro, não possui marcadores de gênero. Seus substantivos, artigos e pronomes, de modo geral, representam a todos com palavras únicas, sendo apenas os pronomes pessoais regidos pelo gênero, como ocorre com he/she (ele/ela).
No caso do português, com o emprego do masculino genérico, a utilização da linguagem neutra tem sido defendida porque apesar da língua em si não ser sexista, a realidade é e acaba tendo suas estruturas patriarcais – que privilegiam o homem em detrimento à mulher – reforçadas na maneira como nos comunicamos. Genéricos femininos, por exemplo, são utilizados, em geral, para retratar o subestimado ou o pejorativo.
Exemplo disso pode ser observado na aplicação generalizada da palavra ‘médico’ quando o objetivo é retratar a classe médica e ‘empregada’ para falar de trabalho doméstico – ocupação que não possui o mesmo apreço social em relação à medicina.
Essa diferenciação acaba reforçando estereótipos e concedendo supostas posições de poder ao gênero masculino frente ao feminino. Prova disso é que tendemos a limitar instituições e organizações, por exemplo, a homens: os senadores, os sócios, os diretores etc.
No livro Manual Prático de Linguagem Inclusiva, de André Fischer, o autor aborda essa questão e afirma que “isso fica explícito quando o mesmo vocábulo tem seu sentido totalmente diferente quando é feito a troca de gênero.”
Como exemplo, Fischer cita a palavra ‘governante’, que é quem dirige um estado ou país, versus governanta, que é aquela que coordena trabalhos domésticos na casa de outra pessoa. Da mesma maneira que “chama-se de touro um homem forte e vaca é usado para depreciar uma mulher.”
Alternativas ao masculino genérico
Mais do que combater a intolerância de gênero e acusar o machismo, o uso de linguagem inclusiva colabora para o respeito à diversidade e fomenta reflexões acerca da disparidade de gênero para além da linguagem. Isso porque o masculino genérico tem forte influência sobre a maneira como as pessoas pensam.
O estudo Cognitive Effects of Masculine Generics in German: An Overview of Empirical Findings (Efeitos Cognitivos de Masculinos Genéricos em alemão: uma visão geral dos resultados empíricos – em tradução livre) revela, a partir de uma série de experimentos realizados entre falantes nativos de alemão (idioma com marcadores de gênero, assim como o português), que a inclusão de mulheres é maior com alternativas não sexistas.
Por exemplo, ao questionar as pessoas sobre “quem é o seu músico favorito” ou “quais os atletas que mais admira” – masculinos genéricos – a maior parte dos participantes do experimento respondeu homens. Quando a mesma pergunta foi feita com linguagem inclusiva – “Qual seu artista musical favorito ou favorita” – mais mulheres foram mencionadas.
Dessa forma, o uso da linguagem inclusiva pode ser considerado um caminho para minimizar falas machistas e mudar pensamentos e comportamentos. Em sua obra, ao questionar o masculino genérico, Fischer faz a seguinte provocação: ao usar ‘Chamo a atenção de todas’ em um ambiente com homens e mulheres, muitos homens provavelmente se sentirão desconfortáveis e mulheres podem se sentir surpresas. “Por terem sido sempre inviabilizadas, muitas delas nem percebem que não estão sendo incluídas nos masculinos genéricos”, afirma.
Para mudar esse cenário, existem soluções como dar preferência a palavras que representem a coletividade, usar substantivos para priorizar instituições em vez de indivíduos, entre outros.
Segundo Fischer, algumas dicas para praticar a linguagem inclusiva são:
Homem não é palavra universal
Não use o termo ‘homem’ para se referir a homens e mulheres.
- A chegada do homem à lua = A chegada da humanidade à lua
- É benéfico para o homem = É benéfico para a sociedade
Mais você e menos eles
Utilizar ‘você’ ajuda a evitar o masculino genérico, assim como substituir o pronome masculino genérico por ‘quem’ e/ou ‘alguém’ ou apenas suprimi-lo.
- O requerente pode escolher como se identificar = Você pode escolher como se identificar
- Recomendo para aqueles que têm problemas respiratórios = Recomendo para quem tem problemas respiratórios
- Vou enviar para eles resolverem = Vou enviar para resolverem
Todas e todos
Usar o masculino e o feminino pode tornar uma frase mais longa, contudo torna o discurso mais inclusivo. É possível ainda priorizar o genérico feminino, trazendo-o à frente do masculino para ressaltar a inclusão.
- Os advogados estão aguardando o início da reunião = Os advogados e as advogadas estão aguardando o início da reunião
- Os alunos precisam estudar = Alunas e alunos precisam estudar
Aposte em pessoas
‘Pessoas’ é uma palavra que pode ser usada independente do gênero, o que faz com que a linguagem seja absolutamente inclusiva.
- Os interessados devem enviar o currículo = Pessoas interessadas devem enviar o currículo
- Buscamos candidatos com ensino superior = Buscamos pessoas com ensino superior
Foco nas instituições
É importante escolher palavras que definam o conjunto ao se referir às instituições/organizações e não às pessoas que fazem parte delas com o uso de masculinos genéricos. Essa mudança muda o entendimento de que não estamos falando de um grupo onde há apenas homens.
- Os políticos = a classe política
- Os índios = a população indígena
- Os legisladores = a atual legislação
- Os juízes = o poder judiciário
- Os professores = o corpo docente
- Os eleitores = o eleitorado
- Os jovens = a juventude
- Os diretores = a diretoria
- Os líderes = as lideranças
- Os deputados = a Câmara
Comuns aos gêneros
Deixar de usar artigos definidos no masculino para palavras que servem aos dois gêneros, como as que possuem o sufixo ‘ista’, é uma das maneiras mais simples de praticar a linguagem inclusiva.
- Os dentistas atendem aos sábados = Dentistas atendem aos sábados
- O carioca gosta de praia = Cariocas gostam de praia
- Os representantes de cada estado = Representantes de cada estado
Para além do gênero
É importante destacar que a linguagem inclusiva requer prática e, principalmente, empatia. Para ser absolutamente inclusivo, no entanto, é preciso se atentar a expressões que, costumeiramente, estão presentes no dia a dia, mas que são extremamente ofensivas a algumas pessoas.
Confira abaixo alguns dos termos que devem ser eliminados do vocabulário:
Pessoas negras e colorismo
Existe uma enorme quantidade de palavras que possuem conotações racistas e que não devem ser usadas. As mais comuns tendem a usar o ‘negro’ ou ‘preto’ para exemplificar algo negativo.
- Mercado negro = mercado ilegal
- Lista negra = lista proibida
- Humor negro = humor ácido
Da mesma forma, por outro lado, há uma tendência a usar o ‘branco’ ou ‘claro’ para ilustrar o que é ou pode ser positivo, como ocorre com ‘inveja branca’, quando o correto é apenas ‘inveja’.
É fundamental, ainda, se atentar ao colorismo, ou seja, a criação de ‘tonalidades de pele’ para criar diferenciação entre pessoas negras na tentativa torná-las ‘menos negras’ e mais semelhantes às brancas. Não use, portanto, a palavra ‘morena’. Diga negra, preta.
Já na linguagem mais coloquial, é premente a extinção de termos como ‘nego’ ou ‘neguinho’ para se referir às pessoas, em geral, de maneira depreciativa:
- Neguinho não está nem aí = Tem pessoas que não estão nem aí
Gordofobia
Assim como o machismo e o racismo, a gordofobia é um problema estrutural na sociedade. A gordofobia se caracteriza pela aversão e preconceito contra pessoas gordas. Muitas vezes, o preconceito vem disfarçado de cuidado quando, sem conhecer o histórico médico de pessoas gordas, automaticamente assumimos que elas possuem problemas de saúde ou podem vir a adquiri-los se não mudarem seus hábitos alimentares. Ou, ainda, quando há a pressuposição de que as pessoas só são gordas porque comem muito ou de maneira errada, a exemplo do fast food.
O preconceito fica evidente quando a mesma ‘preocupação’ não se a aplica a pessoas magras – que podem, muitas vezes, sofrer, inclusive, com distúrbios alimentares. Essa diferenciação entre os corpos coloca o magro no campo do normal, enquanto o gordo se revela como uma anomalia.
No dia a dia, é importante se atentar ao uso de alguns termos:
- Acima do peso ideal. É equivocado o conceito de ‘peso ideal’.
- Gordice. Comumente associado ao ato de comer algo diferente, como uma pizza, por exemplo, o termo ‘gordice’ reforça a ideia de que alguns alimentos estão relacionados somente às pessoas gordas.
- Tão bonita(o) de rosto. Ignorar o corpo de uma pessoa gorda ao elogiar somente seu rosto é afirmar que há algo de errado com o corpo.
Além disso, vale ressaltar que gordo/gorda não é xingamento, por isso não há necessidade de buscar atenuantes para a palavra. Não use diminutivos como ‘fofinha’, ‘gordinha’ e ‘cheinha’. É depreciativo.
Capacitismo
O capacitismo é a discriminação contra pessoas com deficiência, que vem da ideia de que pessoas com deficiência são inferiores ou incapazes em comparação a pessoas que não possuem deficiência. Novamente, trata-se da tentativa de estabelecer um ‘normal’ para desprezar o que foge à ‘regra’.
De acordo com Fischer, o capacitismo se manifesta de forma aberta com uso de palavras discriminatórias ou velada e inconsciente ao reforçar estereótipos. “A começar pelo termo ‘deficiente’ que coloca a condição acima da pessoa. O mais recomendado é ‘Pessoa com Deficiência’ ou a sigla PcD”, explica.
Em sua obra, o autor traz alguns termos que devem ser evitados e que podem ser substituídos:
- Portador de deficiência = Pessoa com deficiência
- Entrada para deficientes = Entrada para pessoas com deficiência
- Criança excepcional= Criança com deficiência intelectual
- Meu filho é especial = Meu filho tem deficiência
- Ele sofre de surdez = Ele é surdo. A surdez não é um sofrimento
- Problema de visão = Ter deficiência visual
- Anão = Pessoa com nanismo
Fischer também desfaz uma confusão que é muito comum: a sigla PNE (Pessoas com Necessidades Especiais) inclui idosos, pessoas com distúrbios psicológicos e outras condições permanentes ou temporárias, como gravidez. Por isso nem toda PNE é PcD e nem toda PcD é PNE.
Diferenças entre linguagem inclusiva e linguagem neutra
É muito comum que as pessoas usem o termo linguagem inclusiva quando, na verdade, estão se referindo à linguagem neutra. Embora ambas existam para quebrar o ciclo de exclusão, os conceitos são diferentes. Enquanto a linguagem inclusiva busca uma forma de comunicação que não exclua nenhuma pessoa sem modificar o idioma, a linguagem neutra, ou não binária, investe na utilização de recursos linguísticos alternativos à norma culta padrão para reconhecer privilégios simbólicos que moldam a nossa comunicação.
Isso significa que a linguagem neutra propõe a alteração do idioma para abarcar um terceiro gênero, que não é feminino nem masculino, e surge para incluir pessoas não-binárias (aquelas que não se identificam nem como homem nem como mulher, mas sim entre ou além dos gêneros), por exemplo, ao passo que também suscita discussões sobre gênero que estão muito além da linguagem.
É na construção da linguagem neutra, portanto, que a letra ‘e’ ganhou espaço para representar o neutro. Daí o uso de ‘todes’, em substituição ao ‘a’ e ‘o’, para evitar a binaridade e incluir todas as pessoas.
Além da letra ‘e’, em 2015, o pronome ‘ile’ foi criado pela psicóloga Andrea Zanella e pela CEO da Diversity BBOX, Pri Bertucci, no Manifesto Para uma Comunicação Radicalmente Inclusiva. O pronome ‘ile’ tem como finalidade substituir os pronomes dele/dela ou aquile (aquele/aquela).
Vale lembrar que antes do uso da letra ‘e’ houve um primeiro movimento de modificar o idioma para incluir todas as pessoas a partir do uso da letra X e do caractere @: ‘todxs’ ou ‘tod@s’. Acontece que X e @ acabam sendo mais exclusivos do que inclusivos. Isso porque além de não ser pronunciáveis, ainda podem atrapalhar a leitura de deficientes visuais, que usam softwares para ler textos, e pessoas com dislexia, por exemplo.
Argumentos e legislação
Um dos principais pontos levantados por quem se posiciona contra a linguagem inclusiva é que usar palavras para representar os dois gêneros, como ocorre com ‘Sejam bem-vindas e bem-vindos’ é que, além de redundante, a frase fica mais longa e não é necessária, uma vez que pela norma, o masculino genérico já inclui.
Da mesma maneira existem argumentos contrários à linguagem neutra, que recriminam o uso do ‘e’ ou ‘ile’ pois esses termos podem comprometer a comunicação e causar confusão às pessoas que não estão familiarizadas com eles – ou, ainda, que a modificação do idioma é desnecessária.
Em termos de legislação, de acordo com levantamento realizado pela Agência Diadorim, o uso de gênero neutro na Língua Portuguesa é tema de 34 Projetos de Lei (PL) em 19 estados brasileiros e todos visam o impedimento da variação na norma gramatical para além dos gêneros feminino e masculino.
Em defesa à linguagem inclusiva e neutra, existem linguistas, no entanto, que apontam a evolução da própria língua, como ocorreu com o pronome ‘você’ – palavra criada que deriva do pronome de tratamento ‘vós’ e que, informalmente, teve seu uso reduzido a ‘cê’ – para justificar as mudanças, reforçando a ideia de que a linguagem deve refletir a realidade e que estes são temas atuais.
Ainda, especialistas enxergam na linguagem inclusiva e neutra a possibilidade de levantar discussões acerca do machismo, bem como às questões de gênero, para mudar comportamentos nocivos da sociedade. E há quem afirme que a resistência ao uso da linguagem inclusiva e a oposição às alterações propostas pela linguagem neutra são, justamente, respostas que explicitam o preconceito e o desejo de manter as estruturas patriarcais já tão enraizadas.
Escute o episódio do Juridcast, podcast da Agência Javali: Como praticar a linguagem inclusiva, com a participação de André Fischer.